A VIA
Pagam por minha passagem. Minhas reservas são para um tempo indefinido. Encaro a multidão dos aeroportos. Há uma sensação de poder em quem transita pelo saguão. O poder do tempo e do espaço. O poder dos fusos. Das estações. Estar acima das camadas densas da noite. Aonde ela é límpida e solitária. Traço um caminho mental do meu destino. O desbravador momento de pisar uma nova cidade. O aviso pra decolar gera uma tensão. Estabilizado na altitude de cruzeiro, dá para levantar do assento, percorrer o corredor observando os poucos leitores que não conseguem dormir e os que dormem como podem. Dou um passo alto e largo sobre alguns pés, até invadir a pequena área da copa improvisada e pedir água. As manobras para aterrissagem guardarão nova tensão na curva final do céu, quando a inclinação da aeronave desafia o limite da estabilidade. Em uma janela, só céu, na outra, só cidade.
Aeroporto de Svradak. Terra além das muralhas naturais. Úmida no clima e seca no trato. Uma diária, check-out, e viajantes desaparecem com suas bagagens de mão. Não despertaram curiosidade especial em comissários, recepcionistas, camareiras. Procuro pelo Sr. Nagasi, 44. Parto de um para o todo. Ele não está em uma lista de proteção a testemunhas, não deixou seguro, tampouco é procurado pela polícia.
Meu quarto está de bom tamanho. O estômago parece apertado. Quando o canto esquerdo do abdome faz um ruído de torneira aberta, não é bom sinal. Preciso de comida sólida e desengordurada. Em um quarto semelhante a este dormiu o Sr. Nagasi. Ao menos passou a noite. Provavelmente tomou uma ducha, penteou-se. Ninguém pode assegurar que tenha se barbeado pela manhã.
Saio. O tradutor digital é o melhor amigo de um estrangeiro. Passeio pelas ruas calmas atrás de refeição caseira. O meu “no pepper, noooo pepper” costuma vir apimentado. Uma moça alta com óculos escuros e cabelo caramelo passa por mim com a cabeça desgovernada. Parece um lápis infantil com uma cabeça de boneco ou bichinho que não para de balançar, como se estivesse ligada ao tronco por uma mola. No ouvido das pessoas está o zumbido P.I. Aqui e em outros lugares. Não se incomodam com as advertências dos noticiários. Eu nem pensaria em consumir drogas ou noticiários. A questão está nos efeitos colaterais. Encontro um restaurante. Há um lustre requintado no centro do salão, todo retorcido que me faz admirá-lo ao mesmo tempo em que me perco e me acho em divagações sobre o desaparecido. Peço um grelhado com legumes também grelhados. Chegam milagrosamente, sem pimenta. Entra um homem com uma criança. Tenho a lembrança simultânea da vivência de dois papéis, paternidade e infância. O lustre com seus aramados, o passado, o desaparecido. Perto da saída apanho um cartão do restaurante e alguns folhetos com endereços de sites.
Deito na cama com preguiça para me desvestir enquanto a vigília induz meus pensamentos às imagens de elefantes, palmeiras, e uma banqueta com cantoneiras em prata, e tudo se desfaz sem que eu perceba, ao penetrar no sono. Acordo horas depois com uma umidade no nariz. Estou agora no banheiro, sentada no vaso tampado com um pedaço de papel comprimindo a narina direita. O ponto final, uma epidemia intramuros (que o governo local insiste em esconder dos turistas), um problema com as plaquetas, uma ocorrência que pré anuncia um acidente vascular? Concluo que o derrame de algumas gotas foi provocado pela altitude. Poucas gotas que não diminuem minha angústia.
Pela manhã, sem nenhuma ocorrência gastrointestinal ou hemorrágica, acesso um dos sites da noite anterior. www.freeend.freeway.sb. “Pegue A Via. A Escolha Maior”. Um mapa indica o acesso, não muito distante de Svradak. Toda região é uma rede de colinas, cúmplices nos caprichos e precipícios, nas quedas de água secretamente geladas, virgens prateadas. Tomo meu café continental, e vou a caminho do centro, em direção à catedral, ponto de destaque de um folheto turístico. Não é devoção. É sintonia com os pés-direitos altos, sombra, e silêncio. Olho para os vitrais. Cacos de luz. Cacos de uma história. O contato com o mundo exterior. Há uma mancha roxa acima do tornozelo, e não me recordo da quina, agudeza, do ponto de contundência. Manchas roxas perduram por dezenove dias. Decido que vou alugar um carro e pegar “A Via”. Não sei se o Sr. Nagasi teve um impulso da mesma ordem; de obstinada curiosidade, se acessou o frreeend. Se entregou-se à travessia como possibilidade.
Estou em um Vanguard, modelo ultrapassado, observando aspectos da cidade. A iluminação dramática, de baixo pra cima, confere aos edifícios públicos a importância que eles não teriam sob a luz do dia. O tráfego flui ondulado sobre as ruas de pedra. Ciclistas são saudáveis como ciclistas de qualquer parte. Entre os cabeças soltas, há os que se cortam com estiletes. Luvas e casacos pesados escondem ferimentos frescos e ardentes. Percebo cortes em pescoços e pontos que se deixam mostrar, sem querer.
Na tarde seguinte ainda encoberta eu pego a saída para Soberic, Sul. Três horas para o meu destino. Nunca tive uma costela dolorida. Uma dor na costela se confunde com uma dor cardíaca. O peito é uma caixa de infarto, prolapso, que sofre de disparos, sopros, de acessos arrítmicos. Um pit stop e um expresso me fariam bem. Fico tão absolutamente atraído por pequenos objetos, em vitrines de postos de combustível, de estradas improváveis. Peço um automóvel com o dedo indicador, quase infantil. Escolho um de corrida, Fórmula Hiper1, hiper modelo. Ligo para a redação ainda com a sensação fugaz do Fórmula1. Já recuperado, sigo viagem. O verde é uma grande sinfonia; allegro ma non troppo, moderato, vivace, andante, quasi presto. Até o meu tradutor me lembrar que uma pequena placa indica: A Via.
A Via é de mão única. Um atalho de uma grande estrada. Curvas sem atalhos, enevoadas. Há uma ponte inacabada que atravessa metade do caminho para o outro lado do abismo. O carro que eu sigo corre e se apaga. Um salto sobre o silêncio verde, sobre as virgens prateadas. Se apaga como uma tocha no fundo de uma garganta. Sobre um cemitério de ferragens. O Sr. Nagasi que alugou um carro sucateado, como o meu, pode ter acelerado para o nada, sem contratar matadores, ou envolver familiares. Sem assinar seu ato. Paro, e caminho por alguns metros sobre a ponte. Perdido em minhas pistas. Evitando a proximidade limite. Inicio minha volta a pé, uma vez que não exista uma mão de retorno.
livro pra tudo que é lado
Há 10 anos